quarta-feira, dezembro 06, 2006

R.I.P





























Ergo a mão e abro rapidamente a cortina da janela tentando provocar susto no que me cerca de fora, inútil. Parece que nada os assusta, ao contrario, tudo me assusta e entristece meus olhos, meu nariz, minha boca, meu peito, minha alma.
Todas ambições juntas formaram uma grande e cinza nuvem desaguando uma cor sem cor, sua obra sem vida. Edificações em forma de progresso rasgaram o assoalho que um dia registrou na lapide tudo que já não existe mais e ali se perdeu sobre tudo que se ergueu. Por trás da vitória deles surge a minha derrota em negra solidão, acima um céu vazio deserto de estrelas. A vingança vem em diferentes frentes, mas todas contra nós mesmos. Solução? Culpar os outros, e retornar ao ciclo interminável da nossa condição humana, ser desumano conosco e com nosso habitat.
Fecho os olhos e anseio estar em outro lugar, essa é a minha maquina do tempo, meu teletransporte que dura apenas segundos de paz. Porque a minha frente está o sentido da civilização a construção acelerada do amanhã, a recriação do que seremos. Antes ruas estreitas, casas baixas, vizinhos na calçada, seus filhos correndo pela rua. Hoje nada disso é natural. Estou preso e saudoso.
Não sei se a mim acontece, ou se a todos como eu que um dia viram e agora não vêem mais. Acontece que para mim e para os que sentem como eu, o natural se tornou estranho e diferente. Um bom dia, uma gentileza, um olhar de carinho, uma resposta educada, um ser humano. Nada se encontra mais dentro de nós, me parece que tudo está por fora, o sentido de sermos estranhos responde a pergunta do porque não sabemos ter em nós as respostas, elas migraram, tudo é exterior, é visual, é artificialmente feito para não nos encontrarmos em nós.
Nossa paisagem foi retirada aos poucos e mesmo percebendo sua irregular condição não nos constrangíamos e aos poucos se perdeu a harmonia, achou-se o caos, construíram a artificialidade, redesenharam a alma, apagaram o orgânico, tatuaram o imaginário.
Ainda forço o cerrar dos olhos o céu cai desmanchando o calor. Nevoa branca sobe do chão, estendo meu corpo, toca-me o choro de quem está em pedaços. Respiro alto e desperto. Olho para baixo, cruza a rua larga um homem, cruzam nossos olhos com desconfiança de não saber explicar.
Da janela o horizonte sinistro se move, quente e soturno, morcego com suas asas em vôo inquieto. Uma massa de umidade e calor cobre a cama para o sono da impiedosa tempestade. Em uma hora como esta vagueio meu pensamento vazio e limpo como os pássaros trazendo para si o contraste entre o que criamos destruindo, e o que ainda não foi tocado em vida.
Que Deus ou qualquer, já que existem tantos e tão pouca fé, nos abençoe e nos dê um pouco mais de tempo para que nessa terra ainda se crie sentidos opostos à incoerência do progresso e da ordem.

Foto por Manu Coloma

3 comentários:

FLORA disse...

Isso que é um bom texto,não os que eu escrevo...Muito me admira sua simplicidade com as palavras...MARAVILHOSAMENTE bem escrito...E,acho que já sou sua fã...
Beijos

Marcellinha disse...

Belo texto... profundo, denso, e cinza...
Beijo

PS.: Obrigada por linkar!

Anônimo disse...

Amém.

Belíssimo.

Um beijo meu.
:)