sábado, outubro 29, 2005

Irmãos de carne e choro

















Penso como seria um dia não ter pele pra sentir
Não ter no rosto olhos a me contar como tudo está
Penso como seria a falta de pés pra chegar ao lá
E sem mãos para outras mãos encontrar o nó
Penso em poder ter aquilo que quero pegar
Mas sei, nem tudo está naquilo que posso ter.
Penso que tudo que sou esta mais fora do que dentro
Porque dentro é alma e fora é humano
Alma continua, viaja, retorna e não morre.
Humano erra, pede desculpa e sofre.
Por isso digo, sou o que está por fora
Pode ser mentira, mas é a minha verdade.
O que forem querer os doutores dizer
Deixo que digam, mas me deixem ser.
Deixe-me ser o que quero
Só espero liberdade
Só desejo ter a mim e poder me servir
Sem tolerar o olhar torto de quem me vê de lado
Se pertenço a alguém, esse está aqui.
Não me venha querer fugir
Me esconder ou murmurar
Sou o que vê e digo o instante que penso
Sou da terra não sou do céu
Nunca fui anjo e sempre fui carne
Não sou da maldade e não tenho preço
Mas sei como é fácil se perder
Quando você sabe que apenas não sabe
Volto ao ponto e lhe digo sou real e humano
Por isso perdôo e chega de pranto.

Foto por Cacá Lima

quinta-feira, outubro 27, 2005

Depoimentos













Finjo falar da mesma forma usando a mesma formula
Tento ser sentido pra mim e desentender de mim
Palavras publicitárias com teor de nada
Toda essa farsa em lata e toda a produção de mascaras
Mudança de conceito pra manter tudo do mesmo jeito

Oh mundo de voz estéreo e visão digital
Mundo fechado achatando as almas
Nas alcovas dos nobres palácios terrenos
Existem negros nos porões esquecidos
Aos gritos o silencio condenado
No pranto se paga o que foi comprado

Oh deuses de voz feroz e enaltecida
Nas suas vestes brancas tentamos escalar
Pedir, suplicar, rastejar e até não pecar
Tentamos chamar atenção ao que resta de nós
Em vão, em vão é o aguardo já esquecido
Então fingimos novamente sermos os seres obedecidos
E voltamos ao chão aos pés dos mandantes

A grande onda navega a espera do sim ou do não
Com total benevolência eu sou como mil corpos
Todos franzinos, todos, quase mortos
Vagando pequenos olhos pela noite
Pela pequena moldura no fundo do arcabouço
Procurando outras palavras e filtros
Na vontade de ter outra cidade que não essa

O barulho da maquina me diz
Acorda pequeno tolo, desperta-te a tua vida!
Só tens vida escrava com fim de morte submissa
Acordo no mesmo lugar, parado escavo com as mãos
Escravo sangue negro em pele e olhos baixos
Aceita o que lhe é dado!
Pelo mundo que pagou barato por sua derrota

Mas as fabricas não podem parar
Ao som das engrenagens estão todos a dançar
Aos felizes sorrisos e os tristes não vejo
Ninguém vê o que se mantém no escuro trancado
E as fabricas não param, fabricam lâmpadas
Escolhem quem iluminar
No foco da luz habitam olhos pequenos
Os mesmos corpos franzinos de meninos e idosos
Como eles, como eu, resolvem nos chamar atenção
Guinando nosso olhar marejado e covarde
Ao encontro do pouco daquilo que nos permitem ver

Do pouco que vejo e do muito imagino
Semeio minha mente e tento lembrar
Buscar na dormência guiada a primeira vista
A primeira morte do inicio dessa vida
Eram homens, eram fortes, eram nobres
Muito ouro nas mãos e muito vermelho nos olhos
Desceram do cerrado trazendo até nós o descampado
Grandes maquinas amarelas queimando o verde
Torcendo as florestas e campos deixados em cinza
Cor de madeira retorcida, cor de alma corrompida

Relembrando o que disse no inicio desse escrito
Finjo! Fingimos! Já estamos cegos e mortos
Já somos nós as maquinas em caixas
Ombro a ombro esperando o comando
A voz segue o botão aperta e a bomba cai!
E se já não caiu que caiam duas, três, quatro ou cinco mil
Trazendo demovo os caminhos de gelo e o golpe
O primeiro giro da roda e o primeiro fogo
Recobrar a inocência das mãos virgens de ossos curvados

É tudo que lembro a principio e o resto é o que está aqui
Nisso que pisas, nisso que não vês e não queres ter
Eu faço parte, sou culpa sem desculpa!
Faço parte do escuro desse beco e mereço
Sei que mereço o todo desse pouco
O oco desse corpo morto que deixei apodrecer
Deixei me render, deixaram todos também
Mas eu poderia ir diferente mesmo que indo só
O grande problema é que não sobrou ninguém
Pra cumprir a pena!

foto por Sergio Rodrigo

quarta-feira, outubro 26, 2005

Sr. Vianna


Já faz quatro dias que nada escrevo, que nada penso sobre mim, você, os outros, a rua logo aqui em baixo, ou tudo que acontece ao contrario que penso ser. Não me importo, mas confesso que me cobro um pouco de ação, um pouco do que não consigo ser no momento que quero ter. E talvez seja essa uma das grandes paredes que fecham a vontade de quem quer transformar em palavras sentimentos que muitas vezes só podem ser sentidos por um toque ou um olhar. Estou de luto com a gramática.

Tento passar minha angustia nessa ultima hora não pensando em nada disso e deixo nas mãos do acaso o que virá e se não vir se acabou, enferrujou, não era pra ser, foi só o que foi. Escutando a tv falando baixinho ao meu lado lembro uma de minhas experiências mais surpreendentes nesses últimos tempos, e pra quem me conhece sabe como é difícil pra mim puxar conversa com alguém que não conheço. Sou pura timidez.

Voltando de lua de mel, ultima escala antes de casa, sentei ao lado de um cara no avião, uma pessoa facilmente notada por sua aura e por sua história. Depois de muito refugar resolvi iniciar uma conversa porque sabia que deveria partir de mim o primeiro assunto, e muito pensei antes de proferir a primeira vogal da minha boca seca, e também já estava me preparando para uma resposta curta e uma descontinuação permanente de uma conversa entre dois desconhecidos, só que um, e esse era eu, não sabia que a fagulha da minha experctativa viraria chama em uma prosa que não iria terminar antes de um sincero e fraterno abraço e de um beijo como só aquele que dou em meu pai, irmãos e em alguns pouquíssimos amigos.

Para o meu completo engano desde as minhas primeiras palavras uma continuação de assuntos e sintonia revelou uma pessoa distante ficar tão próxima de mim. Foram os quarenta e cinco minutos mais curtos da minha vida. Eram tantas historias, tantos momentos críticos passados por aquele homem, eram tantas perdas e amores recusados, era tanta dor e alegria dividida, que algumas lágrimas caíram dos meus olhos porque já não encontravam um lugar no meu corpo que já era um só mar.

Sempre me recordo desse dia, dessa pessoa que em alguns minutos conseguiu mudar vários conceitos em mim, e ele ali sentado, não sabia que ao me levantar eu seguiria diferente.
Ficou marcado um comentário na minha cabeça quando ele me perguntou meu signo e eu disse: gêmeos! E ele: “gêmeos normalmente são contidos, você é diferente, é emotivo!”.

Percebi a diferença entre um estranho comum e um estranho com sentimento, e a grande distancia é o que se carrega por dentro e o que se divide com quem senta no banco ao lado.

Ao Sr. Vianna deixo em testamento todos os abraços que não pude lhe dar, e levo comigo todo o carinho que posso carregar.

Foto por Sebastião Salgado

sexta-feira, outubro 21, 2005

A todos vocês















Quero esquecer dos livros escritos
As páginas marcadas pelos últimos lidos
Esquecer como se faz
Reaprender o não saber
E se tudo é tão igual
E se tudo é tão normal
Então eu devo agir.
Desaprender as teorias
Decoradas pela vida
Nos tempos de hipocrisia.
Não escutar o que é dito
Não ver o que é claro
Não me contentar com o que é barato.
Dizem pra você que já está tudo feito
E que não há nada a fazer
Querem te fazer entender
Que está tudo pronto pra você
E que se nasce pra vencer
E na história sempre vence quem tem poder.
Eles querem te vender a vitória
Roubando toda a verdade de você.
Mais um dia sobre outro dia
Sobre a farsa comum viver
E na ganância de ver o sol nascer
Fazem de tudo que se pode fazer
Escolhem até o lado da sua face
Pra na sua carne bater.
Só há uma forma de aprender
É esquecer
Só há uma forma de lutar
É se levantar.

Foto por Adriana Paiva

quarta-feira, outubro 19, 2005

O que você vê?














Sento aqui fora da prisão
Dentro da dor que incorporo
Escrevo pra ter alivio do corpo
Por não poder correr ou morrer
Quando a vontade vem
E ela vem, sempre vem.

Digo o que vejo e o que me persegue
Descrevo as noites de insônia
Em um pedaço pequeno de papel.
No pouco que me sobra do real
Tento mudar o meu mesmo lugar
E tudo que penso ser mofo do conforto
Tento matar com ar renovado.

Escrevo pra saborear
O doce que não posso provar
Escrevo pra escutar
As vozes que acordado não posso ouvir
Venho aqui e bebo o vinho
E como castigo aprendo a sentir
Porque não me controlo e nem posso
Sou escravo de mim.

Escrevo apenas porque vivo
E tento ler pra poder me ver
Nesse alento tento me reencarnar
E se realmente sou assim
E se realmente estou aqui
Ou sou eu a seguir deitado
Levado pelos braços de qualquer cortejo negro
Se sou eu mesmo dentro da minha carne com osso
Ou se já morto insensível e a tempo sepultado.

Foto por José Silva Pinto

segunda-feira, outubro 17, 2005

sinto saudade














Olho a janela e não penso em nada
Porque não a nada a pensar
Então sinto o vento e vou
Sem pensamento por onde me leva
Sem querer saber o caminho
Por que não acredito em destino
Desconheço a lógica e suas formas
Sou filho do pouco que me sobra do acaso
Não acredito em nada que não seja espontâneo.
Estes são meus olhos fugindo
Caindo pela janela quadrada
Simplesmente não penso
Só olho e sinto o vento.
Sou como pedra
Como a arvore enraizada
Parada na cinza calçada
Apenas aceito o vento
Se frio for se quente quiser
Olho meus pêlos agindo
Nem tenho o poder de mandar em mim
Meu corpo me manda
Meu corpo me tem
Não sou nada e ninguém.
Apenas olhos sentido o vento
Vendo as folhas carregadas
Fragmentos da vida seca que chega
E tristeza ingênua ancora
Na saudade rascante dos amigos
Que o tempo levou e que o vento não traz
E eu sinto, sinto um tanto!
Sinto pelos olhos
Sinto pela boca
Sinto pelo nariz
Sinto pelos ouvidos
Sinto por toda pele
Sinto a dor que geme
Sinto a dor que treme
Sinto o vento gelar no rosto
O sal da lagrima corrente
E nada mais me ocupa o tempo
Só o vento, o vento, o vento...

Foto por Bruno Miranda

sexta-feira, outubro 14, 2005

Oração











Podem me comer a ceia
E me roubar a casa
Podem me roer a alma
E me colocar na caixa
Só não me tirem você

Podem me esconder a rua
E deixar minha pele nua
Podem me coroar santo
E me imputar um nome
Só não me tirem você

Podem crucificar meu pranto
E dizer que enfermo sou
Podem rezar a dor
E me proibir a cura
Só não me tirem você

Podem me trazer o fel
E me rasgar os tambores
Podem me privar os arpejos
E negarem meus desejos
Só não me tirem você

Que caiam das nuvens espinhos
E dos morros raiva e fogo
Que venham todos armados
Tentar me arrancar do seu lado
Que venham todas a pragas
Invadir meu corpo e torna-lo alado
Mesmo assim ficaria em mim
Seu gosto, seu rosto no meu peito tatuado.

Foto por Sebastião Salgado

quinta-feira, outubro 13, 2005

O cão e o diabo









Com os pés nesse asfalto negro
Derreto minhas mãos em continência
Na intenção de só sobreviver
Esquecerão de sonhar e de ser

Olhando minha alma pela segunda vez
Sinto não ter nada mais a oferecer
Há não ser o momento de me perder
Sou humano demais
Pra continuar viver assim

Se não acredito no seu Deus
A culpa cai sobre o homem
Que o matou para enriquecer
E agora se arrepende do que vê

Dói muito mais em mim
Eu que desde pequeno acreditei em tudo
Sinto agora todas as palavras amargas
Em algum lugar entre perdão e poder

Vejo tudo de bom cristalizar
As cores mais verdes
As promessas de infância
Tudo que o mundo derrotou

Ceder a sede do comum
Seguir a falsa promessa
E ter a recompensa em moedas
É muito pouco pra quem quer
Amar, sorrir e cantar
Sou humano demais
Pra continuar viver assim.

Foto por João Pico.

terça-feira, outubro 11, 2005

Cadeados















Não acredito que precise de palavras difíceis
Porque acredito que tudo seja simples
Fecho os olhos pros conceitos
E preconceitos com a forma da minha prosa
Ninguém ensina a escrever
Porque ninguém ensina a sentir
Então deixo pra eles a visão das coisas
Enquanto as coisas são como são
Mal sabem eles como é viver sem razão
Estão sempre acentuando, virgulando, adjetivando
Tudo em cor de caneta vermelha
Tudo com livros de receita
E nessa teia nos apanham pra vivermos emoldurados
Construindo em serie seres enquadrados
Conceituando o todo certo e o muito errado
Porque nunca enxergam que o melhor no homem
Está naquilo que ele não vê e não sabe.

Foto por Marcio Negrão

sexta-feira, outubro 07, 2005

Pra nós dois














Ah meu amor não acredite no mundo como ele é
Acredite apenas em como você o vê
Não acredite nas pessoas como elas são
Acredite que você é diferente
E que nem todo mundo mente
Não acredite em mim quando apenas falo
Mas acredite sim quando te abraço e me calo
Não acredite na incoerência
Do desespero e da ânsia
Acredite no momento e na presença
De quem está a seu lado
Não em quem está a frente ou atrás
Acredite em viver em paz
Não acredite no que de errado der
Acredite no que podes consertar
Mesmo que vá devagar
Não acredite que nunca vai chegar
Acredite no que já percorreu e sofreu
Acredite que um dia tudo passa
Acredite na impermanência a sua frente
E não só no presente
Não acredite em se lançar pelo mar
E dele trazer só mágoa pra contar
Quando se afogas me afoga também
Quero que respires de minha boca se preciso for
Quero que acabe dentro de ti o horror
Viver sem acreditar
É viver a um passo da morte
É viver sangrando o corte
Que o tempo vai curar
Acredite no seu par
Acredite, acredite em amar!

Foto por Clarisse Requeiró

terça-feira, outubro 04, 2005

Olhos















O que importa a mim o que penso
Não devia importar a ninguém o que alguém pensa
O pensamento aprisiona
Deveríamos nós só olhar e admirar
Porque os olhos, estes sim, continuam em liberdade.

Não me importo em ver minhas palavras impressas
Me importo que sejam belas
Porque não me importo com que pensam
Só com que olham.

Tenho apenas um coração
Mas penso que outros homens poderiam nascer com dois
Pra não viver sofrendo demais
Pra não viver pensando demais.

A todos que se dizem artistas
Desejo que sejam débeis.
Invejo os que só enxergam
E apenas sentem com os olhos
Os que não relêem as palavras escritas
Porque assim serão palavras pensadas
Modificadas no desvio antes do coração
E na razão se perdem do belo.

Ver com os olhos
A natureza com que se nasce
E se é simples como é
Deixe simples como flor
Se pensado já é modificado
Feito pra agradar e vender
Feito pra ganhar quando não se importa perder
Feito pra mudar e não feito pra ser.

Foto por Armando F. Sousa

Metade













Quem tem um amor meu senhor
E pode dizer que ele é só seu

Quem tem um amor meu senhor
E pode dizer que por ele não sofreu

Quem tem um amor meu senhor
E por ele dizer que nunca esperou

Quem tem um amor meu senhor
Um daqueles que no acaso se perdeu

Sou filho único da morte breve
Do sorriso de antes alegre

Do andar de antes adiante
Da dor de agora solidão

Quem tem uma dor meu senhor
Por ela pode dizer o que é amor

Quem tem uma dor meu senhor
Pode dizer que um dia sonhou

Quem tem uma dor meu senhor
Daquela que é melhor não ser vivo
Daquela que não se tem nunca alivio

Hoje pode dizer que é metade
Da metade que se foi.

Foto por João Barros